segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

"Máscara de tristeza", Hua Hsu, parte 2


Doom, o super-vilão

FISSÃO A FRIO

Uma confusão de corpos se espreme contra o vidro da cabine do DJ, ansiosos para ver o que está acontecendo lá. Apesar dos avisos de nevasca, o curioso público de Chicago veio em massa ver uma rara apresentação de MF Doom como DJ. Mais cedo naquela noite, sem máscara, Dumile passeou livremente pelo clube, segurando sua caixa e uma lata de refrigerante. Agora centenas de fãs esticam pescoços, se acotovelam por espaço e ficam na ponta dos pés, apenas para notar um detalhe qualquer do rosto de Doom, que está coberto pela máscara.

Celebridade do Hip Hop pode ser algo curioso. O Hip Hop se apresenta como uma expressão inteiramente literal, menos preocupada com abstrações do que com reportar o real. A celebridade é avaliada pela qualidade de suas minúcias autobiográficas e pela sua virulência narrativa, e vira um dado adquirido que, quando o Rapper X murmura que cometeu o Ato Y, ele está ofertando uma aproximação da verdade. Esses são os tipos de meta-questões sobre as quais Dumile ruminou durante seus anos longe da maquinaria do Hip Hop. Dumile raramente oferece detalhes sobre esse período sabático não intencional. Quando provocado, ele ri, “Peço a Quinta Emenda” (o direito constitucional de permanecer calado). Dumile dividiu sua vida entre Atlanta, para onde a família se mudou, e Nova York, onde ele ainda morava. Na maior parte desse tempo, esteve envolvido com a criação do seu filho e juntando dinheiro para gravar. Ele começou a sair com uma garota que se tornou depois sua esposa. Ele mergulhou dentro das canções que eventualmente mais tarde fizeram parte de Operation: Doomsday. Naquela época, estava subisistindo com as coisas mais básicas: alguns discos antigos, sua fé e algumas cervejas ocasionais.

“Naquela época, eu era quase um maldito sem-teto, andando pelas ruas de Manhattan, dormindo em bancos e merdas assim”, admite. Ele disse que o próximo álbum dos KMD (título possível: Mental Illness) vai focar nesses “anos perdidos”. “Foi realmente um período sombrio. Mas ainda pensava que, de alguma forma, acharia meu caminho”. Dumile sabia que, ademais, ele era tão bom quanto os rappers que estavam surfando a crista da onda na metade dos anos 90. Ele estava agora há milhas de distância daquele Zev Love X; sempre que ouvia canções como “Peachfuzz”,  se sentia meio esquisito. Ele via o Hip Hop como um baile de máscara, e precisava achar um jeito criativo de voltar à baila. “No Hip Hop, ficamos meio confusos”, diz. “Acho que nos limitamos com coisas do tipo 'eu sou cara!'. Tipo... eu sou assim e você é assado. No Hip Hop você é 'o cara', e isso pede muita responsabilidade – você não quer carregar isso. Então tipo, se o Hip Hop é sobre se gabar e coisa e tal, então vou criar o personagem mais malvado, que pode dizer bravatas sobre todo tipo de coisa. Tipo, por que não? É tudo imaginção – posso buscar ser o mais radical possível”.

Dumile rebatizou-se MF Doom – MF significava Metal Face, enquanto Doom foi uma homengam dupla. Ao consumado vilão Dr. Doom, da Marvel Comics, e a uma adaptação do seu apelido de infância. Quanto mais pensava nessa invenção, mais isso o intrigava. “A forma como as histórias de quadrinhos são escritas nos mostra os dois lados das coisas, como o cara mau não é exatamente um cara mau se você o enxerga pela perspectiva dele. Através desse estilo de escrita, eu meio que pensei, se eu coloco isso no Hip Hop, é algo que a rapazida ainda não fez. Eu estava procurando um estilo que pudesse ter algo novo. Foi quando eu criei o personagem e reolvi o problema – daí veio o Vilão.

O personagem deu unidade narrativa à montanha de faixas que ele havia registrado desde Black Bastards. Em 1997, Bobbito Garcia, um amigo da época do “Gas Face”, lançou pela sua jovem gravadora Fondle 'Em algo do que Doom vinha produzindo, e as músicas receberam comentários entusiasmados. Doom retornou ao palco em 1998 e seu álbum veio um ano depois. Musicalmente, o álbum era altamente incomum. Surrupiando o som macio do soul oitentista e espremendo as últimas gotas dos samples já mais batidos, Doomsday soou como um eco misterioso duma época passada. “Essa foi a ética do estilo de produção de Doom”, ele explica. “O lugar entre o óbvio e o não óbvio. Usar o que você já tem mas fazer algo totalmente novo. Eu então tinha um número razoável de faixas gravadas. Eu tava tipo, ei!, há algo novo aqui pelo meio que eu tenho que encontrar. Havia infinitas camadas e dimensões, era tipo, qual a que você consegue acessar?”. Jurando se vingar da indústria que o desfigurou, Doom se tornou um dos heróis mais exuberantes do Hip Hop.

“Eu sou um escritor. Acontece apenas que o que eu escrevo tem uma forma rítmica e está sobre uma batida.  Para eu conseguir diferentes anglos narrativos, tipo como um faz escritor num romance, uso diferentes personagens”. Em 2003 ele lançou Take me to you leader como King Geerodah (inspirado em Gidra, de Godzilla), e outro álbum, Vaudeville Villain, como Viktor Vaughn (adaptado do nome real do Dr. Doom, Victor Von Doom). Dumile explica o método da sua mitose: “Eu posso criar múltiplos personagens, e com eles ter visões contraditórias. Estamos crescendo enquanto as coisas vão acontecendo – naturalmente vamos mudando nossa mente. O público olha pra essas mudanças e é tipo, oh, ele está se contradizendo. Quando você tem múltiplos personagens, nunca irá se contradizer. Haver um outro personagem faz com que haja um outro ponto de vista".

O aspecto mais interessante de todos é que as rimas raramente revelam a identidade do narrador. Os personagens de Doom aparecem como rappers convidados nos álbums uns dos outros; eles ajudam uns aos outros nas tarefas de produção, e Dumile paira sobre eles, sem se importar em virar segundo ou terceiro personagem. Ele é rápido ao apontar que todos eles são mesmo personagens, e não sombras da personalidade dele (ou de Doom). “Eu nunca intervenho”, ele afirma. “Eu me mantenho fora disso – Sinto que sou muito coração-mole, não ia ser divertido. Tem que ser com esses caras”. Há diferenças sutis. O Take me to your leader do Geedorah avalia os assuntos da Terra pela perspectiva de um “monstro espacial” -  “King Geedorah, aliança de três dedos/comedor de jovens inocentes/Conhecido como o maloqueiro-mor”, ele nos oferece como uma forma de apresentação, antes de perguntar, “Quem precisa de um revólver?”. O disco do Geerodah faz a seu modo um retrato do racismo na Terra, do hedonismo e a corrupção terráquea nos termos mais bizarros possíveis - a verdade está disfarçada em suas ficções científicas. Vaughn está mais para um “franco atirador,  um bandido obcecado pelo anos 80 com a auto-estima inflada - O diretor Viktor subverte o script como Rob Reiner/ Esse monte de cara devia rimar seus nomes com 'paga-pau'”. “Vik está frustrado agora”, Dumile suspira.

Doom - "Destinado a ganhar três de platina/Vim destruir o rap" – é o personagem mais interessante, o incompreendido vilão que ama a humanidade mas odeia humanos. “Do ponto de vista [dos Estados Unidos], nós somos os vilões. Mas eu sou o super-vilão”.  O objetivo do plano é achar um jeito diferente de transmitir a mesma mensagem da época dos KMD. “Aqui está tudo tão insensível... Eu tive de achar um jeito de me fazer entender e ainda assim fazê-lo de uma forma que gerasse interesse ou que trouxesse o assunto racial.

“Doom é sobre unir as pessoas”, continua. “Gosto de mostrar diferentes perspectivas – coloque-se na pele daquele cara por um segundo e ele não será tão diferente de você. O Vilão poderia ser qualquer um. O personagem Doom é um alguém de pele preta, mas ele poderia ser aqualquer um, de qualquer raça”. A máscara é uma alerta a prestar atenção nas palavras, não na imagem da pessoa. Embora Dumile use seus personagens para expressar coisas que o preocupam, ele afirma que estes nunca revelam a verdadeira constituição emocional dele próprio. Isso é difícil de acreditar. Notável pelas batidas cadenciadas e lentas e versos arrastados de Dumile, os discos de Doom soam excessivamente tristes. Às vezes parece que os personagens de Dumile são uma forma de se distrair da melancolia, ou ao menos disfarçá-la como fantasia de outro mundo. Às vezes eles [os personagens, os discos] parecem assombrados pela memória do seu irmão, mesmo que ele resista a gravar uma canção que fale abertamente desses sentimentos. Em “Doomsday”, ele disfarça essa ânsia com uma tímida preocupação sobre inscrições tumulares: "Desde o útero até eu voltar pra onde meu irmão se foi/Isso é o que meu túmulo dirá/Logo acima do meu nome civil, Dumile [Doom-será-enterrado-aqui]/ anônimo ou conhecido – ei, quem vai saber?". Em “Gas Drawls” aparece ele abrindo uma cerveja em homenagem a Subroc – "Eu abro uma cerveja tipo..., ninguém sabe... como [Zev Love] X, o invisível, se sente” - para imediatamente mudar de foco e ridicularizar os rivais e amaldiçoar “a megera invisível” do Quarteto Fantástico.

É fácil não levar Dumile a sério quando ele versa que tudo que precisa é de uma “face de metal com minha careta embutida (“It ain't Nttin”) e um suprimento constante de cervejas (que menciona em quase todas as canções), quando o verso seguinte invoca monstros espaciais ou, no seu último lançamento, Mm... Food (Rhtnesayers), carnes e temperos. Mesmo quando Dumile relembra Subroc e ele são “como os pretos Smothers Brothers” (“Kon Karne”), ele afirma que na verdade essa é a voz de Doom. No mínimo, a de Zev. Mas nunca a de Dumile. “Tudo vem dos personagens”, ele insiste, “nunca de mim”. Talvez. Às vezes nem mesmo Dumile se parece com Dumile, como se ele realmente não se reconhecesse sem a máscara. Como todos em sua volta desapareceram, ele multiplicou a si mesmo para se manter em boa companhia. Seu rol de personagens continua insinuando a história mais triste que o Hip Hop já contou; tal como um Charlie Kaufman do Hip Hip, o próprio Dumile não reivindica saber o que seus personagens vão fazer ou falar. Eles estão fora do seu controle, seguindo seus próprios caminhos. 

“Esses caras são loucos”, ele ri. “Eles podem fazer tudo. Doom é um personagem muito foda – ele vai estar por aí pra sempre. Eu admiro esse cara.” 

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Capa da edição da Wire, de março de 2005, na qual Hua Hsu publicou "Mask of sorrow"


É possível ler o texto original em inglês aqui.


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Doom, em 1997, no lendário programa do Strech and Bobbito

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Doom, em 2000, em concerto na Filadélfia

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Doom, em 2002, foto retirada de um artigo do New York Times