segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

"Máscara de tristeza", Hua Hsu, parte 2


Doom, o super-vilão

FISSÃO A FRIO

Uma confusão de corpos se espreme contra o vidro da cabine do DJ, ansiosos para ver o que está acontecendo lá. Apesar dos avisos de nevasca, o curioso público de Chicago veio em massa ver uma rara apresentação de MF Doom como DJ. Mais cedo naquela noite, sem máscara, Dumile passeou livremente pelo clube, segurando sua caixa e uma lata de refrigerante. Agora centenas de fãs esticam pescoços, se acotovelam por espaço e ficam na ponta dos pés, apenas para notar um detalhe qualquer do rosto de Doom, que está coberto pela máscara.

Celebridade do Hip Hop pode ser algo curioso. O Hip Hop se apresenta como uma expressão inteiramente literal, menos preocupada com abstrações do que com reportar o real. A celebridade é avaliada pela qualidade de suas minúcias autobiográficas e pela sua virulência narrativa, e vira um dado adquirido que, quando o Rapper X murmura que cometeu o Ato Y, ele está ofertando uma aproximação da verdade. Esses são os tipos de meta-questões sobre as quais Dumile ruminou durante seus anos longe da maquinaria do Hip Hop. Dumile raramente oferece detalhes sobre esse período sabático não intencional. Quando provocado, ele ri, “Peço a Quinta Emenda” (o direito constitucional de permanecer calado). Dumile dividiu sua vida entre Atlanta, para onde a família se mudou, e Nova York, onde ele ainda morava. Na maior parte desse tempo, esteve envolvido com a criação do seu filho e juntando dinheiro para gravar. Ele começou a sair com uma garota que se tornou depois sua esposa. Ele mergulhou dentro das canções que eventualmente mais tarde fizeram parte de Operation: Doomsday. Naquela época, estava subisistindo com as coisas mais básicas: alguns discos antigos, sua fé e algumas cervejas ocasionais.

“Naquela época, eu era quase um maldito sem-teto, andando pelas ruas de Manhattan, dormindo em bancos e merdas assim”, admite. Ele disse que o próximo álbum dos KMD (título possível: Mental Illness) vai focar nesses “anos perdidos”. “Foi realmente um período sombrio. Mas ainda pensava que, de alguma forma, acharia meu caminho”. Dumile sabia que, ademais, ele era tão bom quanto os rappers que estavam surfando a crista da onda na metade dos anos 90. Ele estava agora há milhas de distância daquele Zev Love X; sempre que ouvia canções como “Peachfuzz”,  se sentia meio esquisito. Ele via o Hip Hop como um baile de máscara, e precisava achar um jeito criativo de voltar à baila. “No Hip Hop, ficamos meio confusos”, diz. “Acho que nos limitamos com coisas do tipo 'eu sou cara!'. Tipo... eu sou assim e você é assado. No Hip Hop você é 'o cara', e isso pede muita responsabilidade – você não quer carregar isso. Então tipo, se o Hip Hop é sobre se gabar e coisa e tal, então vou criar o personagem mais malvado, que pode dizer bravatas sobre todo tipo de coisa. Tipo, por que não? É tudo imaginção – posso buscar ser o mais radical possível”.

Dumile rebatizou-se MF Doom – MF significava Metal Face, enquanto Doom foi uma homengam dupla. Ao consumado vilão Dr. Doom, da Marvel Comics, e a uma adaptação do seu apelido de infância. Quanto mais pensava nessa invenção, mais isso o intrigava. “A forma como as histórias de quadrinhos são escritas nos mostra os dois lados das coisas, como o cara mau não é exatamente um cara mau se você o enxerga pela perspectiva dele. Através desse estilo de escrita, eu meio que pensei, se eu coloco isso no Hip Hop, é algo que a rapazida ainda não fez. Eu estava procurando um estilo que pudesse ter algo novo. Foi quando eu criei o personagem e reolvi o problema – daí veio o Vilão.

O personagem deu unidade narrativa à montanha de faixas que ele havia registrado desde Black Bastards. Em 1997, Bobbito Garcia, um amigo da época do “Gas Face”, lançou pela sua jovem gravadora Fondle 'Em algo do que Doom vinha produzindo, e as músicas receberam comentários entusiasmados. Doom retornou ao palco em 1998 e seu álbum veio um ano depois. Musicalmente, o álbum era altamente incomum. Surrupiando o som macio do soul oitentista e espremendo as últimas gotas dos samples já mais batidos, Doomsday soou como um eco misterioso duma época passada. “Essa foi a ética do estilo de produção de Doom”, ele explica. “O lugar entre o óbvio e o não óbvio. Usar o que você já tem mas fazer algo totalmente novo. Eu então tinha um número razoável de faixas gravadas. Eu tava tipo, ei!, há algo novo aqui pelo meio que eu tenho que encontrar. Havia infinitas camadas e dimensões, era tipo, qual a que você consegue acessar?”. Jurando se vingar da indústria que o desfigurou, Doom se tornou um dos heróis mais exuberantes do Hip Hop.

“Eu sou um escritor. Acontece apenas que o que eu escrevo tem uma forma rítmica e está sobre uma batida.  Para eu conseguir diferentes anglos narrativos, tipo como um faz escritor num romance, uso diferentes personagens”. Em 2003 ele lançou Take me to you leader como King Geerodah (inspirado em Gidra, de Godzilla), e outro álbum, Vaudeville Villain, como Viktor Vaughn (adaptado do nome real do Dr. Doom, Victor Von Doom). Dumile explica o método da sua mitose: “Eu posso criar múltiplos personagens, e com eles ter visões contraditórias. Estamos crescendo enquanto as coisas vão acontecendo – naturalmente vamos mudando nossa mente. O público olha pra essas mudanças e é tipo, oh, ele está se contradizendo. Quando você tem múltiplos personagens, nunca irá se contradizer. Haver um outro personagem faz com que haja um outro ponto de vista".

O aspecto mais interessante de todos é que as rimas raramente revelam a identidade do narrador. Os personagens de Doom aparecem como rappers convidados nos álbums uns dos outros; eles ajudam uns aos outros nas tarefas de produção, e Dumile paira sobre eles, sem se importar em virar segundo ou terceiro personagem. Ele é rápido ao apontar que todos eles são mesmo personagens, e não sombras da personalidade dele (ou de Doom). “Eu nunca intervenho”, ele afirma. “Eu me mantenho fora disso – Sinto que sou muito coração-mole, não ia ser divertido. Tem que ser com esses caras”. Há diferenças sutis. O Take me to your leader do Geedorah avalia os assuntos da Terra pela perspectiva de um “monstro espacial” -  “King Geedorah, aliança de três dedos/comedor de jovens inocentes/Conhecido como o maloqueiro-mor”, ele nos oferece como uma forma de apresentação, antes de perguntar, “Quem precisa de um revólver?”. O disco do Geerodah faz a seu modo um retrato do racismo na Terra, do hedonismo e a corrupção terráquea nos termos mais bizarros possíveis - a verdade está disfarçada em suas ficções científicas. Vaughn está mais para um “franco atirador,  um bandido obcecado pelo anos 80 com a auto-estima inflada - O diretor Viktor subverte o script como Rob Reiner/ Esse monte de cara devia rimar seus nomes com 'paga-pau'”. “Vik está frustrado agora”, Dumile suspira.

Doom - "Destinado a ganhar três de platina/Vim destruir o rap" – é o personagem mais interessante, o incompreendido vilão que ama a humanidade mas odeia humanos. “Do ponto de vista [dos Estados Unidos], nós somos os vilões. Mas eu sou o super-vilão”.  O objetivo do plano é achar um jeito diferente de transmitir a mesma mensagem da época dos KMD. “Aqui está tudo tão insensível... Eu tive de achar um jeito de me fazer entender e ainda assim fazê-lo de uma forma que gerasse interesse ou que trouxesse o assunto racial.

“Doom é sobre unir as pessoas”, continua. “Gosto de mostrar diferentes perspectivas – coloque-se na pele daquele cara por um segundo e ele não será tão diferente de você. O Vilão poderia ser qualquer um. O personagem Doom é um alguém de pele preta, mas ele poderia ser aqualquer um, de qualquer raça”. A máscara é uma alerta a prestar atenção nas palavras, não na imagem da pessoa. Embora Dumile use seus personagens para expressar coisas que o preocupam, ele afirma que estes nunca revelam a verdadeira constituição emocional dele próprio. Isso é difícil de acreditar. Notável pelas batidas cadenciadas e lentas e versos arrastados de Dumile, os discos de Doom soam excessivamente tristes. Às vezes parece que os personagens de Dumile são uma forma de se distrair da melancolia, ou ao menos disfarçá-la como fantasia de outro mundo. Às vezes eles [os personagens, os discos] parecem assombrados pela memória do seu irmão, mesmo que ele resista a gravar uma canção que fale abertamente desses sentimentos. Em “Doomsday”, ele disfarça essa ânsia com uma tímida preocupação sobre inscrições tumulares: "Desde o útero até eu voltar pra onde meu irmão se foi/Isso é o que meu túmulo dirá/Logo acima do meu nome civil, Dumile [Doom-será-enterrado-aqui]/ anônimo ou conhecido – ei, quem vai saber?". Em “Gas Drawls” aparece ele abrindo uma cerveja em homenagem a Subroc – "Eu abro uma cerveja tipo..., ninguém sabe... como [Zev Love] X, o invisível, se sente” - para imediatamente mudar de foco e ridicularizar os rivais e amaldiçoar “a megera invisível” do Quarteto Fantástico.

É fácil não levar Dumile a sério quando ele versa que tudo que precisa é de uma “face de metal com minha careta embutida (“It ain't Nttin”) e um suprimento constante de cervejas (que menciona em quase todas as canções), quando o verso seguinte invoca monstros espaciais ou, no seu último lançamento, Mm... Food (Rhtnesayers), carnes e temperos. Mesmo quando Dumile relembra Subroc e ele são “como os pretos Smothers Brothers” (“Kon Karne”), ele afirma que na verdade essa é a voz de Doom. No mínimo, a de Zev. Mas nunca a de Dumile. “Tudo vem dos personagens”, ele insiste, “nunca de mim”. Talvez. Às vezes nem mesmo Dumile se parece com Dumile, como se ele realmente não se reconhecesse sem a máscara. Como todos em sua volta desapareceram, ele multiplicou a si mesmo para se manter em boa companhia. Seu rol de personagens continua insinuando a história mais triste que o Hip Hop já contou; tal como um Charlie Kaufman do Hip Hip, o próprio Dumile não reivindica saber o que seus personagens vão fazer ou falar. Eles estão fora do seu controle, seguindo seus próprios caminhos. 

“Esses caras são loucos”, ele ri. “Eles podem fazer tudo. Doom é um personagem muito foda – ele vai estar por aí pra sempre. Eu admiro esse cara.” 

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Capa da edição da Wire, de março de 2005, na qual Hua Hsu publicou "Mask of sorrow"


É possível ler o texto original em inglês aqui.


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Doom, em 1997, no lendário programa do Strech and Bobbito

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Doom, em 2000, em concerto na Filadélfia

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Doom, em 2002, foto retirada de um artigo do New York Times




terça-feira, 26 de janeiro de 2021

“Máscara de tristeza”, de Hua Hsu, parte 1



Daniel Dumile: Zev Love X, MF DOOM, Viktor Vaughn, King Geedorah, etc.

A máscara deve está dentro da caixa - dessas caixas pretas reforçadas com as quinas de metal. É do tamanho de uma fatia de pão, porém mais larga e com metade da espessura. O fecho resistente e os detalhes em metal sugerem importância, a própia caixa parece suportar sozinha a interrogatórios sem revelar seus segredos.

A primeira vez que eu estou com Daniel Dumile, não há sinais do rapper MF Doom. Doom é conhecido por duas coisas: fantásticas rimas densas e uma impassível máscara prateada que raramente não está em seu rosto. Dumile é conhecido por ser o Doom. O primeiro encontro com Dumile é nos fundos de um clube em Chicago, e a máscara está na caixa, grudada ao corpo dele. Fones de ouvido pendem do pescoço, e seus dedos envolvem uma lata de Coca restando um gole apenas. Sua bela barriga redonda se projeta por baixo da camiseta que, surpreendemente, não é larga o bastante para escondê-la. Tudo em seu aspecto físico - sua forma de estar; o jeito que seus óculos ficam tortos no rosto, o dentadura postiça de ouro, o sorriso cheio de gengiva; a barba rala e aleatórea na bochecha; o jeito desesperado com que segura a caixa – tudo é um pouco desengonçado. Há muito barulho no fundo do clube, então nos refugiamos na camionete que seu empresário alugou para os próximos dois dias. A camionete está em um beco, sob uma fina camada de neve.

A máscara está no chão. Sei disso porque assim que entrei na parte de trás da camionete, senti que pisava em alguma coisa - olho pro chão e a máscara está ali, emborcada e inofensiva. Afasto-a suavamente do caminho. Quando Dumile e a sua turma entram, ninguém parece dar a mínima. Ele pega a máscara do chão, coloca no colo e continua segurando a caixa. Ele e um amigo fofocam sobre o rapper Viktor Vaughn - eles se pergutam o que Vaughn fará em breve, especulando como se ele fosse uma pessoa real e não apenas um dos muitos nomes de Dumile no palco. Para frisar, eles nunca são reais.

Dumile abre a caixa. Está cheia de CDs. Primeiro mistério é solucionado.

OS TRÊS

A vida artística de Daniel Dumile consiste em três partes. Na adolescência, rimou sob o nome de Zev Love X como parte dos KMD, um grupo que ele fundou com seu irmão, Dingilizwe. Precoces e espirituosos, os KMD fizeram um sucesso mediano no raiar da década de 90 como contemporâneos dos Brand Nubian e do coletivo Native Tongue. Essa é a primeira parte. Dumile fala apenas moderamente sobre a segunda: os anos entre a morte do seu irmão em 1993 (e o subsequente desmanche dos KMD) e 1998, quando ele resurge, sem nenhum aviso, no microfone aberto de um evento de poesia no Nuyirucab Poets' Café, em Nova York. Foi a primeira vez em anos que ele aparecia em público e ele estava usando um gorro que cobria todo o rosto. "Ali era meio que um novo MC", recorda.

Nós estamos em meio à terceira parte, a que se inicia naquela noite (em 1998) e tem, se poderia dizer, redimido Dumile. Aqueles anos permitiram ele olhar para trás, para os primeiros 25 ou mais, e não se sentir perseguido por perguntas e memórias. Sua carreira inspirou seguidores que o cultuam. Ele raramente aparece em público sem o rosto metálico feito como réplica das máscaras do filme Gladiador.

Desde 1999 ele já lançou seis albuns a solo; projetos colaborativos com Madlib, MF Grimm e The Monster Island Czars, e pelo menos seis discos de instrumental. Ele grava discos sob os nomes de King Geedorah (pela Big Dada), Viktor Vaughn (pela Sound-Ink) e MF Doom, e ele está brincando com a ideia de trazer de volta também o Zev. Ele é mais conhecido como Doom, personagem central de dois dos seus melhores álbuns, a desconsertante estreia de 1999 Operation: Doomsday (Fondle 'Em) e o celebrado Madvillainy (Stones Throw), do ano passado, gravado com o recluso companheiro Madlib, sob o nome de Madvillain. Pro ano que vem, há planos para uma continuidade do Madvillain, um álbum novo dos KMD e possíveis colaborações com o Wu-Tang Clansman e o companheiro Ghostface Killah, espécie de mente criadora similar.

É frequentemente difícil entender onde um personagem de Dumile termina e outro começa, porque todos são variações do mesmo tema. "O clássico vilão com uma máscara, estilo Fantastma da Ópera", explica. "Há um pouco do Dr. Doom, até mesmo um pouco do Destro do GI Joe. É um ícone da cultura americana". O fato de todos os seus personagens trafegarem por atrás da mesma máscara complica as coisas, assim como a tendência de Dumile de emarenhar, entre eles, detalhes das histórias que escreve. Mas Dumile sente prazer com a confusão: ela torna as reviravoltas mais afiadas e mais ricos os suspenses. "O vilão", ele ressalta entusiasmado, "sempre retorna".

MUITO DANIFICADO

Em 1990, os americanos temeram de fato o planeta negro [menção ao disco Fear of a  Black Planet, de 1990, dos Public Enemy]. De acordo com uma pesquisa da Gallup publicada naquele ano, o americano "médio", sem dúvida influenciado pela mídia e pela cultura pop, estimou que cerca de 30 por cento da população do país era negra. No entanto, à época, os americanos negros constituíam talvez metade dessa porcetagem; mas aquela estimativa requer um contexto. A eleição de Ronald Reagan em 1980 coincidiu com uma reformulação da longa e arrastada guerra às drogas. O combate às drogas se tornou mais do que um pacote de regras e leis: virou obsessão, uma forma de radicalizar a ideia de crime. Ao longo dos 20 anos seguintes, uma queda nas estatísticas criminais (uma declinação que os cientistas sociais argumentaram que teria acontecido a despeito de Reagan) coincidiu com uma rápida expansão das presídios no país, e uma cruzada para preenchê-las de forma mais rápida e eficiente possível. Atualmente, o Departamento de Justiça reporta que um oitavo dos americanos negros na casa dos vinte e início dos trinta estavam encarecados ano passado. Um homem negro nos Estados Unidos tem uma chance em cada três de ir para a prisão. Uma coisa estranha começou a acontecer no decorrer desses 20 anos: pessoas começaram a desaparecer.

KAUSA POSITIVA

Assim como todo assassino teve colegas de escola, todo vilão começa por uma mera semente. Dumile nasceu em Londres no começa da década de 70 e sua família esteve em alguns bairros de Nova York antes de se estabelecer em Long Island. Hip Hop era uma constante para Daniel e Dingilizwe. Eles registravam os programas noturnos de Hip Hip segurando um toca-fitas em frente a um velho rádio-relógio que eles tinham. Em 1985, os irmãos agarinharam dinheiro suficiente para comprar um modesto equipamento de gravação. Eles se batizaram com algo apropriado a grafiteiros pouco talentosos: Kausin Much Damage (Kausando Muito Dano), or KMD como abreviação. Daniel nomeou-se Zev Love X, Dingilizwe tornou-se Subroc.

Era uma tempo inocente. De La Soul e JVC Force asseguraram a Long Island um lugar no cânone do Hip Hop e Dumile apareceu meia geração após a dos Public Enemy, EPMD e De La, a quem ele se refere como seus "colegas". Nas redondezas de Far Rockway, Queens, vivia um jovem rapper chamado MC Serch. Serch e Dumile se tornaram amigos rapidamente, e quando veio o tempo de Serch e seu grupo 3rd Bass assinarem um contrato com a Def Jam, Serch perguntou a Dumile se ele não queria gravar um verso como convidado em um dos singles.

O resultado foi a "Gas Face", de 1990. Construída sobre o piano tagarela de "Respect", de Aretha Franklin e um humor perspicaz, a faixa foi um dos melhores e mais alegres singles do que ficou consagrado como a Era de Ouro do Hip Hop. "Eu meio que trouxe essa ideia", Dumile recorda. "Costumávamos fazer muita gozação, então eu vim com esse termo "gas face" (cara de trouxa) - que é a cara que você faz quando está em choque ou é surpreendido. Como quando alguém pega você com a guarda baixa."

Pouco depois, os KMD assinaram com a Elektra Records e começaram a trabalhar no disco de estreia, Mr. Hood (1991). Eles readaptaram o nome do grupo - a sigla agora representava "uma Kausa positiva em uma sociedade Muito Danificada" - e adicionaram um terceiro membro, Onyx The Birthstone Kid. Dumile e seu irmão estavam ambos na flor da idade e podiam se bandear todas as noites de Long Island para o Chung King Studios, em Manhattan. "Fizemos todo o álbum à noite. O álbum inteiro reflete exatamente como era naquele tempo: eu na casa de minha mãe, fazendo beats, cortando cabelo para tirar uma grana extra, negociando discos e sei lá mais o quê. Um período de boa, entende? Era a adolescência, aquele período bem juvenil".

A capa de Mr. Hood traz uma fotografia em preto e branco de crianças afro-americanas brincando numa rua em Nova York. Tirada por Arthur Leipzig em 1950, há tranquilidade na composição, uma quietude concetrada  que permite o jovem saltar,  para o deleite dos observadores hipnotizados, entre os quadros desenhados a giz na calçada. Muito embora você estremeça ao pensar no que pode ter acontecido logo além do frame, a imagem de Leipzig se concentra em algo além do político. O garoto ainda não é um homem. Ele tem direito à sua desenfreada alegria, a aquecer-se no eterno verão da juventude. Ao fundo - em cores berrantes e fluorescentes - estão os membros do KMD, se bem que poderiam ser parte da foto original. Mr. Hood é meio imaculado. Ele está impregnado do dinamismo e da efervecência da puberdade: é divertido. “Crackpot” detalha, com uma inocência quase pueril, a evolução de um valetão de playground que se tornou o vagabundo do bairro, enquanto a festiva e efervescente “Peachfuzz” demonstra um trio ansioso por crescer, contando os fiapos do queixo e estufando o peitoral em frente ao espelho. A maior parte do sample dessa música vem da Vila Sésamo. Já o single fora de série “Who me?” ataca antigos esteriótipos associados aos afro-americanos – a canção começa com um enxerto de um disco infantil sobre um persoangem chamado Little Sambo – a batida funk pastelão disfarça suas ameaças. Mr. Hood possui uma porção de raiva – contra os esteriótipos, a desigualdade, a algo ainda-não-nomeado – mas é uma raiva administrável e diminuta. No canto superior direito da capa está a logo da banda, o Sambo, um cartoon de um homem branco fazendo black face sob uma tarja de proibição, mas mesmo isso possui um certo grau de jocosidade.

O álbum alcançou relativo sucesso. O videoclipe de “Peachfuzz” grudou na programação da MTV e o trio excursionou com nomes como Queen Latifah, Digital Underground, Big Daddy Kane e 3rd Bass. Os irmãos estavam trabalhando bastante.

Os pais deles tinham se separado e os dois homens remanecentes da casa, apoiando-se no Hip Hop, tiraram a mãe e a irmã da pobreza. Eles reservaram esperanças muito modestas para eles mesmos: "conseguir nossa casa própria e curtir um momento legal lá”, suspira Dumile, devagar. Foi quando nós estávamos crescendo. "Naquele tempo do álbum, eu tive meu primeiro filho e meu irmão a filha dele – memórias do começo da vida adulta. As coisas estavam mudando, o barato foi ficando louco, tanto dentro do jogo do rap quanto na vida".

“O jogo do rap tava mudando – o estilo gangsta vinha desbancando tudo. Além do que só por ser mais velho muita coisa acontece também.” Ele para, procura a linguagem que combine com seus olhos marejados. “Vivendo especialmente aqui nos Estados Unidos, sendo negro, ou seja lá como você queira chamar, essa idade é um período crucial. É quando você cai em um monte de armadilha.”

EU OUÇO VOZES

Dumile ultrapassou a linha, as armadilhas estavam colocadas, ele chegou aos 20. “Neste país, vivendo aqui, um monte de coisa vai acontecendo a uma certa idade, que é bem quando você vai entrando na vida adulta. Um monte de coisa começa a acontecer. Merdas bem estranhas". Amigos do Dumile começaram a desaparecer – "assassinados, encarcerados, merdas assim”. Um dia, ele olhou a sua volta e tudo tinha mudado. Ele já não era um adolescente precoce com contrato fonográfico e com o bolso cheio. Ele era um jovem adulto. “Fui notando que minha gente foi desaparecendo – gente boa, não gente ruim. Hoje eu sou tipo o último cara que sobrou da minha turma daquele período”. Com duas canções por gravar, o irmão de Dumile se juntou aos desaparecidos. Subroc morreu em um medonho acidente de carro.

“Como eu lidei com isso?”, ele se questiona. “Não sei mesmo. Tive de me manter focado. Eu tinha que garantir que sairíamos disso. As metas que eu e meu irmão estabelecemos... elas tinham que ser cumpridas. Coube a mim. Sabe o que isso me fez lembrar? Nós éramos grandes fãs do Boogie Down Productions naquela tempo. Quando aquilo aconteceu com Scott LaRock [em 1987o DJ do BDP foi assassinado a tiros nas ruas] – Deus o abençoe – Foi tipo.., um pressuposto para isso, para o que nos aconteceu. Quando aquilo ocorreu e nós dois soubemos, automaticamente pensamos que poderia ter sido a gente no lugar dele. E se o mesmo tipo de coisa acontecesse com um de nós – você sabe do que eu tô falando – o que podíamos fazer?

“Então vimos como o Kris [KRS-One] lidou com a situação”, continua. “Ele podia ter parado. Não sabíamos o que ele ia fazer. Ele ia lançar um outro álbum? Ele então veio com aquela coisa – [1988's] By All Means Necessary. Portanto aquilo nos mostrou como lidar com a situação. Fez com que estivéssemos pronto para o que pudesse eventualmente acontecer”.

Como um adolescente, presenciar seu herói KRS-One se recuperar da morte do amado parceiro LaRock deixou Dumile mentalmente preparado para uma perda semelhante. Ele fez o que pode para postergar a dor para mais tarde, tocando em frente o Black Bastards, e mergulhando de cabeça na aguda polêmica e no funk denso do álbum.

Às vezes Black Bastards é tão despojado e brincalhão quanto Mr. Hood. “Sweet Premium Wine” e a mulherenga “Plumskinzz” satisfazem impulsos libertinos inofensivos, enquanto a graciosamente devassa de “Contact Blitz” vai ao encontro dos KMD migrando do berço materno para uma turnê cheia de fumaça ilítica. Mas acabaram-se a raiva encenada e os olhos arregalados da meninice. Ao invés dos samples da Vila Sésamo e discos infantis, há samples vocais da trilha sonora do chocante e desafiador Sweet Sweetback's Badasssss Song, do Melvin Van Peebles, e do intimidador álbum Blue Guerrilha, de Gylan Kain, membro do Last Poets.

Uma diferença entre KMD e outros grupos de Hip Hop está contida numa diferença entre dois epítetos: “nigga” e “sambo”. Depois de uma tumultuada e muito debatida polêmica, o termo aposentado (“nigga”) foi reclamado e reabilitado pela cultura afro-americana, sua conotação outrora degradante metamorfoseou-se para um tratamento afetuoso mas também meio marrento e algo machista. Sambo, entretanto, remete a um termo desagradável de um tempo distante: não há forma de modificar ou ironizar uma palavra criada para reduzir afro-americanos a bebês tacanhos e medrosos. Enquanto seus pares aperfeiçoavam suas caras de mau, o estilo marrento, os KMD se preocupavam com auto-destruição. Os Dumile cresceram fazendo parte da Five Percent Nation, um ramo negro da fé mulsumana que também contava com os Wu-Tang Clan, os Brand Nubian e Rakim como aderentes. Eles (KMD) procuraram reconstruir os pagãos “surdos, mudos e cegos”, mas eles queriam fazer isso de uma forma simpática, aagradável, com juventude mas sem criancice. Às vezes o álbum parecia rir para não chorar. A capa de Black Bastards trouxe um desenho rudimentar de um Sambo, meio sorridente e meio exasperado, sendo enforcado. O linchamento do logotipo da banda pretendia sugerir a morte de um estereótipo.

Em abril de 1994, um mês antes do lançamento, um colunista da Billboard chamado Tern Rossi se posicionou contra a arte da capa. Rossi, que não ouviu o álbum nem entendeu as intenções irônicas dos KMD, escreveu um artigo para essa revista tão influente desconjurando a Elektra. Jackie Martinez, chefe da Hit U Off Management que cuidava dos KMD, argumentou que (a capa) abordava "como os negros eram outrora retratados, nada mais do que isso. A arte da capa é exatamente o oposto do que essas pessoas interpretaram agora”.

Naquela época, inclusive, a indústria fonográfica se encontrava como peça chave nas guerras culturais. Apenas dois anos antes, o furor em volta de “Cop Killer”, do Ice-T, provocou boicotes de níveis elevados, campanhas de desinvestimento e debates acalorados sobre moralidade pública. A última coisa que a gravadora dos KMD desejava era criar qualquer tipo de controvérsia. A não ser abandonar a capa, não havia outra forma de responder à Rossi. Dumile, que tinha feito o desenho, não cederia. O álbum foi retirado de produção e os KMD foram liberados do contrato. (A versão integral do disco só iria aparecer em 2000, pelo selo Subverse).

“Consegue imaginar?”, ele pergunta, exasperado. “Durante um período de seis meses, foi tipo, as coisas foram mudando de forma rápida e drástica, em todos os aspectos. Foi uma coisa pesada. Naquela época eu não enxerguei isso assim, mas agora quando eu penso sobre, foi realmente um tempo bem duro.”

Então Dumile fez o que tinha que fazer: desapareceu, também.

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Os KMD: Zev Love X, DJ Subroc e Onyx the Birthstone Kid

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3rd Bass, em "The gas face", com  participação de Zev Love X

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A 'polêmica' capa de "Black Bastards"

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Doom pré-máscara, meados dos anos 90






quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

"A vida de meu pai", de Raymond Carver

 Revisão da tradução por Igor Valente


Raymond e seu pai, Raymond


O meu pai se chamava Clevie Raymond Carver. Sua família o chamava Raymond, e seus amigos C. R. Fui registrado como Raymond Clevie Carver Jr. Odiava a parte do “Junior”. Quando eu era pequeno, meu pai me chamava Frog, o que era bem tranquilo. Mais tarde, como todos da minha família, ele começou a me chamar de Junior. Me chamou assim até eu ter treze ou quatorze anos e decidir que não ia responder mais ninguém que me chamasse desse jeito. Ele então começou a me chamar de Doc. Deste período até a sua morte, em 17 de junho de 1967, ele só me chamou de Doc ou de Filho.

Quando ele faleceu, minha mãe telefonou pra minha esposa pra lhe dar a notícia. Eu estava longe de casa naquela época, entre vidas, tentando me inscrever na Escola de Biblioteconomia da Universidade de Iowa. Quando ela atendeu o telefone, minha mãe berrou, “Raymond morreu!”. Por um segundo, minha esposa pensou que minha mãe estava falando que eu estava morto. Minha mãe então esclareceu de qual Raymond ela estava falando, no que minha esposa disse, “Graças a Deus. Pensei que você tinha falado do meu Raymond”.

Meu pai pegou muita carona em vagões vazios quando saiu do Arkansas até o estado de Washington em 1934, a procura de trabalho. Eu não sei precisar se ele estava perseguindo um sonho quando foi para Washington. Tenho minhas dúvidas. Não acho que ele sonhasse muito. Acredito que ele estava apenas procurando um trabalho estável com um salário decente. Quando digo trabalho estável quero dizer trabalho. Ele foi catador de maçãs por um tempo, a seguir virou trabalhador da construção civil na Barragem da Grand Coulee. Depois que ele juntou algum dinheiro, comprou um carro e foi até o Arkansas ajudar sua família, meus avós, a se mudarem para o oeste. Ele disse que meus avós estavam literalmente passando fome. Foi durante um curto período no Arkansas, numa cidade chamada Leola, que minha mãe topou com meu pai na calçada quando ele estava saindo de uma taberna. 

“Ele estava bêbado”, ela disse. “Nem sei por que eu o deixei falar comigo. Os olhos dele estavam brilhando. Gostaria de ter tido uma bola de cristal”. Eles se conheceram noutra situação, pouco mais de um ano antes, em uma festa. Ele teve algumas namoradas antes dela, minha mãe me disse. “Seu pai sempre teve namorada, mesmo depois de se casar comigo. Mas ele foi meu primeiro e único. Nunca tive outro homem. Também nunca senti falta”. 

Um juiz de paz os casou no mesmo dia em que foram para Washington; ela, uma garota grande do campo; ele, um trabalhador braçal camponês que depois se tornou empregado da construção civil. Minha mãe passou sua lua de mel com meu pai e a família dele, todos acampados na beira de uma estrada no Arkansas.

Em Omak, Washington, meu pai e minha mãe viviam em um espaço não muito maior que um chalé. Meus avós moravam ao lado. Meu pai ainda estava trabalhando na barragem, esta tinha grandes turbinas que produziam eletricidade com a água represada 100 milhas Canadá adentro. Ele esteve na multidão para ouvir Franklin D. Roosevelt discursar no canteiro de obras. “Ele nunca mencionou aqueles que morreram construindo a barragem”, meu pai disse. Alguns de seus amigos morreram lá, homens do Arkansas, Oklahoma e Missouri.

Ele depois arranjou trabalho em uma serraria em Clatskanie, Oregon, uma pequena cidade ao lado do rio Columbia. Eu nasci lá, e minha mãe tinha uma foto de meu pai em frente à entrada da serraria, me exibindo orgulhosamente para a câmera. Meu gorro está torto e prestes a cair. A boina dele está com a pala para trás, e ele está ostentando um grande sorriso. Ele estava começando ou acabando o turno? Não interessa. De qualquer modo, ele tinha um trabalho e uma família. Eram dias de inocência e juventude.

Em 1941 nos mudado pra Yakima, Washington, onde meu pai foi trabalhar como guardador de serras, uma função específica que ele aprendeu em Clatskanie. Quando a guerra começou, ele foi dispensado de ir ao combate porque seu trabalho foi considerado importante para os esforços de guerra. Madeira trabalhada era uma das necessidades das forças armadas, e ele manteve suas serras tão afiadas que elas podeiam raspar os pêlos dos braços.

Depois de meu pai nos levar pra Yakima, ele levou seus pais também. Em meados dos anos quarenta, o resto da família do meu pai – seus irmão, suas irmã e o marido, como também os tios, primos, sobrinhos e outros parentes – saiu de Arkansas. Tudo meio que motivado por meu pai, que foi o primeiro a sair. Os homens vieram para trabalhar na Boise Cascade, onde meu pai trabalhou, e as mulheres vieram trabalhar como empacotadeiras de maçãs para as fábricas de conservas. Em pouco tempo se conseguia perceber – de acordo com minha mãe – que todo mundo estava melhorando de vida exceto meu pai. “Seu pai não conseguia juntar dinheiro”, minha mãe dizia. “O dinheiro sempre sumiu no fundo dos bolsos. Ele estava sempre fazendo algo pelos outros”.

A primeira casa que eu lembro de ter morado, na 1515 South Fifteenth 10 Street, em Yakima, o banheiro era no lado de fora. Na noite de Halloween, ou em qualquer outra, não importa, as crianças da vizinhança, pré-adolescentes, eram capazes de tirar nosso banheiro e levá-lo pra beira da estrada. Meu pai sempre tinha que arranjar alguém para ajudá-lo a trazer o banheiro de volta. Essas crianças podiam também levar nosso banheiro pra um quintal qualquer. Uma vez eles literalmente botaram fogo no banheiro. Mas a nossa não era a única casa que tinha o banheiro fora. Quando eu já estava crescido o suficiente para saber o que fazia, jogava pedras nos outros banheiros quando via alguém entrando lá. Isso de jogar pedra eu chamava de bombardeamento de banheiros. Depois de um tempo, no entanto, todas as casas foram colocando banheiros internos, até que, de repente, o nosso era o único banheiro em toda a vizinhança que ainda ficava do lado de fora. Lembro da vergonha que senti quando um dia meu professor da terceira série, Sr. Wise, me deu carona até em casa. Pedi pra ele parar numa casa antes da minha, fingindo que morava ali.

Eu consigo lembrar do que aconteceu uma noite quando meu pai chegou tarde em casa e encontrou todas as portas fechadas por dentro por minha mãe. Ele estava bêbado, e nós pudemos sentir a casa tremer enquanto ele tentava abri-la. Quando ele forçou e abriu a janela, minha mãe o acertou bem na testa com o coador e ele foi nocauteado. Nós o vimos lá na grama. Anos depois disso, eu costumava pegar esse coador – que era tão pesado quanto um rolo de mesa – e imaginar quão doloroso devia ser levar com um troço desse na cabeça.

Foi nesse período, pelo que eu me lembro, que meu pai veio no meu quarto falar comigo. Ele se sentou na cama e me disse que eu talvez teria de ir morar por um tempo com a minha tia LaVan. Eu não conseguia entender o que eu tinha feito para ter que ir morar em outra casa. Mas isto, também – qualquer que tenha sido o motivo – deve ter passado, mais ou menos, até porque continuamos juntos e eu não precisei ir morar com minha tia  ou outro parente.

Lembro da minha mãe jogando o uísque do meu pai pelo ralo. Às vezes ela jogava tudo, às vezes, quando estava com medo de ser apanhada, ela jogava metade do uísque e preenchia com água o restante da garrafa. Uma vez provei o uísque do meu pai. Aquilo era horrível, não consegui entender como alguém era capaz de bebê-lo.

Depois de um bom tempo sem um, finalmente conseguimos um carro em 1949 ou 50; um Ford 1938. Mas na primeira semana ele se estragou e meu pai teve que mandar reconstruir o motor.

"Nós tínhamos o carro mais velho da cidade”, minha mãe dizia. “Com todo dinheiro que gastamos consertando esse carro, podíamos ter comprado um Cadillac”. Uma vez ela encontrou um tubo de batom no chão do carro, além de um lenço de renda. “Vê isso?”, ela disse para mim. “Alguma biscate esqueceu isso no carro”.

Uma vez eu a vi levar uma panela com água quente para dentro do quarto onde meu pai estava dormindo. Ela pegou a mão dele e a colocou dentro da água quente. Isto faria ele falar enquanto dormia, ela me disse. Havia coisas que ela precisava saber, coisas que ela tinha certeza que ele escondia dela.

Quase todo ano, quando eu era criança, pegávamos o North Coast Limited sentido Cascade Range de Yakima até Seatlle e ficávamos no hotel Vance e comíamos, eu me lembro, em um lugar chamado Dinner Bell Café. Uma vez nós fomos ao Iva’s Acres of Clams e bebemos caldo quente de ameijoa.

Em 1956, ano que eu terminaria o ensino médio, meu pai se demitiu da serraria em Yakima e arranjou um trabalho em Chester, uma pequena cidade serralheira do norte da California. As razões naquela época para ele ter aceitado esse trabalho foram que eles pagavam um pouco mais pela hora trabalhada e uma vaga promessa de que ele poderia, em alguns anos, chegar à chefia dessa nova serraria. Mas acho, principalmente, que meu pai estava inquieto e queria simplesmente tentar a sorte em outro lugar. As coisas tinham se tornado um pouco previsíveis para ele em Yakima. Também, no ano anterior, tinham falecido, com o intervalo de seis meses de um para o outro, os seus pais.

Porém, alguns poucos dias depois que eu terminei o colégio, quando minha mãe e eu estávamos prontos para mudarmos para Chester, meu pai escreveu uma carta para dizer que ele não estava muito bem. Ele não queria que ficássemos preocupados, ele disse, mas ele tinha se cortado numa serra. Talvez ele tivesse um pouco de detrito de aço no sangue. Enfim, alguma coisa aconteceu e ele teve que faltar ao trabalho, ele disse. Nessa mesma correspondência tinha um cartão postal não assinado que dizia para minha mãe que meu pai estava prestes a morrer e que ele estava bebendo uísque puro a sério.

Quando chegamos em Chester, meu pai estava morando em um trailer que pertencia à empresa. Eu não o reconheci imediatamente. Acho que por um momento eu não queria reconhecê-lo. Ele estava muito magro e pálido e parecia confuso. Suas calças estavam frouxas. Ele não parecia meu pai. Minha mãe começou a chorar. Meu pai colocou os braços em volta dela e deu tapinhas em suas costas vagamente – como se ele não soubesse o que estava se passando. Nós três começamos a viver no trailer, e cuidávamos dele o melhor que podíamos. Mas pai estava doente, e não conseguia melhorar. Eu trabalhei com ele na serraria durante o verão e parte do outono. Nós levantávamos pela manhã e comíamos ovos e torradas enquanto ouvíamos rádio, e em seguida saíamos com nossas marmitas. Nós atravessámos a porta de entrada às oito da manhã, e eu só o veria de novo na hora da saída. Em novembro eu voltei para Yakima para ficar mais perto da minha namorada, a garota que eu tinha colocado na cabeça de que iria me casar.

Ele trabalhou na serraria em Chester até fevereiro, quando ele teve uma crise durante o trabalho e foi levado para o hospital. Minha mãe me pediu se eu não poderia vir ajudá-la. Eu peguei um ônibus de Yakima até Chester com a intenção de dirigir com o carro da família de volta para Yakima. Mas agora, somado à sua doença física, meu pai estava em meio a um colapso nervoso, embora nenhum de nós soubesse nomear aquilo naquele tempo. Durante toda a viagem de volta para Yakima, ele não falou nada, nem mesmo quando fizemos perguntas diretamente para ele (“Como você se sente, Raymond?”, “Você está bem, pai?”). Ele se comunicou, se isso foi se comunicar, mexendo a cabeça ou a mão como se dissesse que ele não estava nem aí para nada.  A única vez que ele disse alguma coisa durante a viagem foi quando eu estava correndo numa rodovia em Oregon e o escapamento do carro caiu. “Você estava indo muito rápido”, ele disse.

De volta a Yakima, um doutor encaminhou meu pai para um psiquiatra. Minha mãe e meu pai ficaram de "baixa" do trabalho, como aquilo foi chamado, e o município pagou pelo psiquiatra. O psiquiatra perguntou a meu pai, “Quem é o Presidente?”. Ele fez uma pergunta que ele pudesse responder. “Ike”, meu pai disse. Mesmo assim, eles o colocaram no quinto andar do Valley Memorial Hospital e começaram com ele o tratamento de eletrochoque. Eu já estava casado e tentando começar a minha própria família. Meu pai ainda estava internado quando minha esposa veio para o mesmo hospital, apenas um andar abaixo, para ter o nosso primeiro bebê. Após o parto, subi as escadas para dar a notícia a meu pai. Eles me levaram até uma porta de aço e me indicaram onde eu poderia encontrá-lo. Ele estava sentado num sofá, enrolado a um cobertor. Pensei, que merda está acontecendo com meu pai? Sentei perto dele e disse a ele que agora ele se tornara avô. Ele demorou um minuto para dizer: “Eu me sinto como avô”. Foi tudo o que ele disse. Ele não riu e nem se mexeu. Ele estava numa grande sala com um monte de outras pessoas. Então eu o abracei, e ele começou a chorar.

Entretanto ele saiu de lá. Mas então vieram os anos em que ele não pôde trabalhar e ficava em casa tentando achar algo com que se ocupar e tentando entender o que foi que ele fez de errado na vida pra acontecer essa reviravolta. Minha mãe pulou de trabalho em trabalho. Um tempo depois ela se referia a esse tempo em que meu pai estava no hospital, e aos anos depois de sua saída, como “quando o Raymond esteve doente”. A palavra doente jamais voltou a ser a mesma para mim de novo.

Em 1964, por conta da ajuda de um amigo, ele foi sortudo o suficiente para se empregar em uma serraria em Klamath, California. Ele se mudou pra lá sozinho para ver se podia lidar com aquilo. Ele viveu relativamente perto da serraria, num quarto-e-sala não muito diferente daquele primeiro quarto-e-sala em que ele e minha mãe moraram assim que eles foram para o oeste. Ele rabiscava umas cartas para minha mãe, e se acontecia de eu ligar para casa, ela lia as cartas em voz alta para mim. Nessas cartas, ele dizia que estava tudo em ordem. Todo dia que ele saía para o trabalho, ele sentia que aquele dia era o mais importante da sua vida. Cada dia passado, dizia ele, fazia o próximo ser mais fácil. Ele disse pra ela me mandar um alô. Se ele não podia dormir à noite, ele dizia, ele pensava em mim e nos bons tempos que já tivemos juntos. Afinal, depois de alguns meses, ele recuperou um pouco de confiança. Ele podia trabalhar e não pensar e se preocupar de que ele pudesse decepcionar alguém outra vez. Quando ele estava mais estabelecido, ele pediu para que minha mãe viesse morar com ele. 

Ele ficou sem trabalhar por seis anos e perdeu tudo nesse tempo – casa, carro, móveis e eletrodomésticos, incluindo o enorme congelador que minha mãe adorava. Ele perdeu sua credibilidade – Raymond Carver era alguém que não conseguia pagar suas contas – e por isso a sua autoconfiança se foi. Ele chegou a perder a virilidade. Minha mãe contou para minha esposa, “todo aquele tempo que Raymond esteve doente nós dormíamos na mesma cama, mas não tivemos relações. Ele quis algumas vezes, mas nada aconteceu. Eu não sentia falta, mas acho que ele queria".

Durante esses anos eu estava tentando fazer a minha própria família e ganhar a vida. Mas, por um motivo ou outro, nós estávamos sempre se mudando. Eu não conseguia acompanhar de perto o que estava acontecendo na vida do meu pai. Mas eu tive uma chance em um Natal em lhe dizer que eu queria ser escritor. Eu poderia muito bem ter dito a ele que queria ser também um cirurgião plástico.  “Sobre o que você vai escrever?”, ele quis saber. Depois, querendo me ajudar, ele me disse, “Escreva sobre as coisas que você sabe. Escreva sobre aquelas pescarias que gente já fez”. Eu disse que podia ser, mas sabia que não faria. “Depois manda algo que você escreveu”, ele disse. Eu disse que mandaria, mas não o fiz. Eu não queria escrever nada sobre pescarias, e não achava que ele particularmente se importava ou mesmo entendesse o que eu estava escrevendo naquele tempo. Fora isso, ele não era um leitor. Não o tipo, aliás, que eu imaginava atingir com a minha escrita.

Então ele morreu. Eu estava muito longe, em Iowa, com muitas coisas ainda para lhe dizer. Eu não tive a chance de me despedir dele nem dizer que ele estava indo muito bem no novo emprego, que eu estava orgulhoso por ele tentar recomeçar.

Minha mãe disse que ele veio do trabalho aquela noite e comeu um bom prato. Depois se sentou sozinho à mesa e terminou de beber uma garrafa de uísque que já estava pela metade, uma garrafa que ela achou escondida no fundo do lixo sob o café moído um dia antes mais ou menos. Então ele se levantou e foi pra cama, onde minha mãe iria juntar-se a ele mais tarde. Mas durante a noite ela teve de levantar e ir dormir no sofá. “Ele estava roncando tão alto que eu não conseguia dormir”, ela disse. Na manhã seguinte quando ela foi olhá-lo, ele estava de costas com a boca aberta, suas bochechas estavam afundadas. Um fantasma, ela disse. Ela sabia que ele estava morto – não era preciso que um médico disse isso a ela. Mas ela ligou para o médico, de qualquer forma, e em seguida ela ligou para minha esposa.

Entre as fotos que minha mãe guardou do meu pai e dela daquele período em Washington, tinha uma em que ele estava parado em frente a um carro, segurando uma cerveja e uma vara de pescar. Ele estava usando o boné virado para trás, com um sorriso estranho na cara. Pedi a ela essa foto e ela me deu essa e umas outras. Essa eu sempre pendurava na parede em toda casa em que me mudava. Eu a examinava cuidadosamente de tempos em tempos, tentando captar alguma coisa do meu pai, e talvez de mim mesmo nesse processo. Mas eu não conseguia. Meu pai continuava a se distanciar mais e mais de mim, até que voltava no tempo. Afinal, durante uma mudança, perdi a tal fotografia. Foi então que eu tentei rememorá-la, e ao mesmo tempo que eu tentava dizer algo sobre meu pai, pensei como nós em coisas essenciais éramos parecidos. Escrevi o poema quando eu estava vivendo em um apartamento na zona sul de San Francisco, em um período que eu estava, como o meu pai, passando por problemas com o álcool. O poema foi uma forma de eu tentar me conectar com ele.

Fotografia do meu pai com vinte e dois anos

Outubro. Aqui nessa cozinha fria e nada familiar
estudo a face jovem e envergonhada do meu pai.
Sorriso sem graça, ele segura numa das mãos uma perca
amarela no anzol, e na outra uma garrafa de Carlsberg.
De jeans e camisa de flanela, ele se inclina
contra o para-choque dianteiro de um Ford 1934.
Ele desejava uma pose franca e saudável para sua posteridade,
com seu velho chapéu pendendo sobre a orelha.
Por toda vida meu pai quis parecer durão.
Mas seus olhos o desmentem, e suas mãos
oferecem frouxamente a perca morta no anzol
e a garrafa de cerveja. Pai, eu amo você,
porém, como expressar minha gratidão, eu que tampouco consigo lidar com bebida
e nem mesmo conheço lugares onde pescar. 


O poema é real em sua essência, exceto por meu pai ter falecido em junho e não outubro, como a primeira palavra do poema diz. Eu queria uma palavra com mais de uma sílaba para poder alongá-la um pouco. Mas mais do que isso, eu queria um mês apropriado ao que eu sentia quando escrevia o poema – um mês de dias curtos e luzes esbatidas, neblinado, coisas perecendo. Junho é verão dia e noite, formaturas, meu aniversário de casamento, o nascimento de um dos meus filhos. Junho não é o mês em que seu pai falece.

Depois do funeral, enquanto estávamos saindo, uma mulher que eu não conhecia veio até mim e me disse: “Ele está mais feliz onde ele está agora”. Eu a observei até perdê-la de vista. Ainda me lembro de um pequeno detalhe do botão do chapéu que ela estava usando. Um dos primos do meu pai – eu não sabia nome do homem – veio até mim e me cumprimentou. “Nós todos sentiremos a falta dele”, disse, e eu sabia que ele não estava apenas tentando ser educado.

Eu comecei a chorar pela primeira vez desde que soube da sua morte. Não estava pronto antes. Não tinha tido tempo para a ficha cair. Agora, de repente, eu não conseguia parar. Segurei-me a minha mulher e chorei enquanto ela dizia e fazia o que estava ao seu alcance para me confortar no meio daquela tarde de verão.

Ouvi as pessoas falarem coisas consoladoras para minha mãe, e fiquei contente que a família do meu pai tenha aparecido, e tenha vindo até onde ele estava. Eu pensei que conseguiria recordar tudo que foi dito e feito naquele dia e talvez algum dia encontrasse um jeito de registrar isso. Mas não. Esqueci tudo, ou quase. O que eu realmente me lembro é que eu ouvi meu/nosso nome ser usado muitas vezes naquela tarde, o nome do meu pai e o meu. Mas eu sabia que eles estavam falando do meu pai. Raymond, essas pessoas continuaram falando em suas lindas vozes saídas da minha infância, Raymond.


Os Carvers

É possível ler o original em inglês aqui.