terça-feira, 26 de janeiro de 2021

“Máscara de tristeza”, de Hua Hsu, parte 1



Daniel Dumile: Zev Love X, MF DOOM, Viktor Vaughn, King Geedorah, etc.

A máscara deve está dentro da caixa - dessas caixas pretas reforçadas com as quinas de metal. É do tamanho de uma fatia de pão, porém mais larga e com metade da espessura. O fecho resistente e os detalhes em metal sugerem importância, a própia caixa parece suportar sozinha a interrogatórios sem revelar seus segredos.

A primeira vez que eu estou com Daniel Dumile, não há sinais do rapper MF Doom. Doom é conhecido por duas coisas: fantásticas rimas densas e uma impassível máscara prateada que raramente não está em seu rosto. Dumile é conhecido por ser o Doom. O primeiro encontro com Dumile é nos fundos de um clube em Chicago, e a máscara está na caixa, grudada ao corpo dele. Fones de ouvido pendem do pescoço, e seus dedos envolvem uma lata de Coca restando um gole apenas. Sua bela barriga redonda se projeta por baixo da camiseta que, surpreendemente, não é larga o bastante para escondê-la. Tudo em seu aspecto físico - sua forma de estar; o jeito que seus óculos ficam tortos no rosto, o dentadura postiça de ouro, o sorriso cheio de gengiva; a barba rala e aleatórea na bochecha; o jeito desesperado com que segura a caixa – tudo é um pouco desengonçado. Há muito barulho no fundo do clube, então nos refugiamos na camionete que seu empresário alugou para os próximos dois dias. A camionete está em um beco, sob uma fina camada de neve.

A máscara está no chão. Sei disso porque assim que entrei na parte de trás da camionete, senti que pisava em alguma coisa - olho pro chão e a máscara está ali, emborcada e inofensiva. Afasto-a suavamente do caminho. Quando Dumile e a sua turma entram, ninguém parece dar a mínima. Ele pega a máscara do chão, coloca no colo e continua segurando a caixa. Ele e um amigo fofocam sobre o rapper Viktor Vaughn - eles se pergutam o que Vaughn fará em breve, especulando como se ele fosse uma pessoa real e não apenas um dos muitos nomes de Dumile no palco. Para frisar, eles nunca são reais.

Dumile abre a caixa. Está cheia de CDs. Primeiro mistério é solucionado.

OS TRÊS

A vida artística de Daniel Dumile consiste em três partes. Na adolescência, rimou sob o nome de Zev Love X como parte dos KMD, um grupo que ele fundou com seu irmão, Dingilizwe. Precoces e espirituosos, os KMD fizeram um sucesso mediano no raiar da década de 90 como contemporâneos dos Brand Nubian e do coletivo Native Tongue. Essa é a primeira parte. Dumile fala apenas moderamente sobre a segunda: os anos entre a morte do seu irmão em 1993 (e o subsequente desmanche dos KMD) e 1998, quando ele resurge, sem nenhum aviso, no microfone aberto de um evento de poesia no Nuyirucab Poets' Café, em Nova York. Foi a primeira vez em anos que ele aparecia em público e ele estava usando um gorro que cobria todo o rosto. "Ali era meio que um novo MC", recorda.

Nós estamos em meio à terceira parte, a que se inicia naquela noite (em 1998) e tem, se poderia dizer, redimido Dumile. Aqueles anos permitiram ele olhar para trás, para os primeiros 25 ou mais, e não se sentir perseguido por perguntas e memórias. Sua carreira inspirou seguidores que o cultuam. Ele raramente aparece em público sem o rosto metálico feito como réplica das máscaras do filme Gladiador.

Desde 1999 ele já lançou seis albuns a solo; projetos colaborativos com Madlib, MF Grimm e The Monster Island Czars, e pelo menos seis discos de instrumental. Ele grava discos sob os nomes de King Geedorah (pela Big Dada), Viktor Vaughn (pela Sound-Ink) e MF Doom, e ele está brincando com a ideia de trazer de volta também o Zev. Ele é mais conhecido como Doom, personagem central de dois dos seus melhores álbuns, a desconsertante estreia de 1999 Operation: Doomsday (Fondle 'Em) e o celebrado Madvillainy (Stones Throw), do ano passado, gravado com o recluso companheiro Madlib, sob o nome de Madvillain. Pro ano que vem, há planos para uma continuidade do Madvillain, um álbum novo dos KMD e possíveis colaborações com o Wu-Tang Clansman e o companheiro Ghostface Killah, espécie de mente criadora similar.

É frequentemente difícil entender onde um personagem de Dumile termina e outro começa, porque todos são variações do mesmo tema. "O clássico vilão com uma máscara, estilo Fantastma da Ópera", explica. "Há um pouco do Dr. Doom, até mesmo um pouco do Destro do GI Joe. É um ícone da cultura americana". O fato de todos os seus personagens trafegarem por atrás da mesma máscara complica as coisas, assim como a tendência de Dumile de emarenhar, entre eles, detalhes das histórias que escreve. Mas Dumile sente prazer com a confusão: ela torna as reviravoltas mais afiadas e mais ricos os suspenses. "O vilão", ele ressalta entusiasmado, "sempre retorna".

MUITO DANIFICADO

Em 1990, os americanos temeram de fato o planeta negro [menção ao disco Fear of a  Black Planet, de 1990, dos Public Enemy]. De acordo com uma pesquisa da Gallup publicada naquele ano, o americano "médio", sem dúvida influenciado pela mídia e pela cultura pop, estimou que cerca de 30 por cento da população do país era negra. No entanto, à época, os americanos negros constituíam talvez metade dessa porcetagem; mas aquela estimativa requer um contexto. A eleição de Ronald Reagan em 1980 coincidiu com uma reformulação da longa e arrastada guerra às drogas. O combate às drogas se tornou mais do que um pacote de regras e leis: virou obsessão, uma forma de radicalizar a ideia de crime. Ao longo dos 20 anos seguintes, uma queda nas estatísticas criminais (uma declinação que os cientistas sociais argumentaram que teria acontecido a despeito de Reagan) coincidiu com uma rápida expansão das presídios no país, e uma cruzada para preenchê-las de forma mais rápida e eficiente possível. Atualmente, o Departamento de Justiça reporta que um oitavo dos americanos negros na casa dos vinte e início dos trinta estavam encarecados ano passado. Um homem negro nos Estados Unidos tem uma chance em cada três de ir para a prisão. Uma coisa estranha começou a acontecer no decorrer desses 20 anos: pessoas começaram a desaparecer.

KAUSA POSITIVA

Assim como todo assassino teve colegas de escola, todo vilão começa por uma mera semente. Dumile nasceu em Londres no começa da década de 70 e sua família esteve em alguns bairros de Nova York antes de se estabelecer em Long Island. Hip Hop era uma constante para Daniel e Dingilizwe. Eles registravam os programas noturnos de Hip Hip segurando um toca-fitas em frente a um velho rádio-relógio que eles tinham. Em 1985, os irmãos agarinharam dinheiro suficiente para comprar um modesto equipamento de gravação. Eles se batizaram com algo apropriado a grafiteiros pouco talentosos: Kausin Much Damage (Kausando Muito Dano), or KMD como abreviação. Daniel nomeou-se Zev Love X, Dingilizwe tornou-se Subroc.

Era uma tempo inocente. De La Soul e JVC Force asseguraram a Long Island um lugar no cânone do Hip Hop e Dumile apareceu meia geração após a dos Public Enemy, EPMD e De La, a quem ele se refere como seus "colegas". Nas redondezas de Far Rockway, Queens, vivia um jovem rapper chamado MC Serch. Serch e Dumile se tornaram amigos rapidamente, e quando veio o tempo de Serch e seu grupo 3rd Bass assinarem um contrato com a Def Jam, Serch perguntou a Dumile se ele não queria gravar um verso como convidado em um dos singles.

O resultado foi a "Gas Face", de 1990. Construída sobre o piano tagarela de "Respect", de Aretha Franklin e um humor perspicaz, a faixa foi um dos melhores e mais alegres singles do que ficou consagrado como a Era de Ouro do Hip Hop. "Eu meio que trouxe essa ideia", Dumile recorda. "Costumávamos fazer muita gozação, então eu vim com esse termo "gas face" (cara de trouxa) - que é a cara que você faz quando está em choque ou é surpreendido. Como quando alguém pega você com a guarda baixa."

Pouco depois, os KMD assinaram com a Elektra Records e começaram a trabalhar no disco de estreia, Mr. Hood (1991). Eles readaptaram o nome do grupo - a sigla agora representava "uma Kausa positiva em uma sociedade Muito Danificada" - e adicionaram um terceiro membro, Onyx The Birthstone Kid. Dumile e seu irmão estavam ambos na flor da idade e podiam se bandear todas as noites de Long Island para o Chung King Studios, em Manhattan. "Fizemos todo o álbum à noite. O álbum inteiro reflete exatamente como era naquele tempo: eu na casa de minha mãe, fazendo beats, cortando cabelo para tirar uma grana extra, negociando discos e sei lá mais o quê. Um período de boa, entende? Era a adolescência, aquele período bem juvenil".

A capa de Mr. Hood traz uma fotografia em preto e branco de crianças afro-americanas brincando numa rua em Nova York. Tirada por Arthur Leipzig em 1950, há tranquilidade na composição, uma quietude concetrada  que permite o jovem saltar,  para o deleite dos observadores hipnotizados, entre os quadros desenhados a giz na calçada. Muito embora você estremeça ao pensar no que pode ter acontecido logo além do frame, a imagem de Leipzig se concentra em algo além do político. O garoto ainda não é um homem. Ele tem direito à sua desenfreada alegria, a aquecer-se no eterno verão da juventude. Ao fundo - em cores berrantes e fluorescentes - estão os membros do KMD, se bem que poderiam ser parte da foto original. Mr. Hood é meio imaculado. Ele está impregnado do dinamismo e da efervecência da puberdade: é divertido. “Crackpot” detalha, com uma inocência quase pueril, a evolução de um valetão de playground que se tornou o vagabundo do bairro, enquanto a festiva e efervescente “Peachfuzz” demonstra um trio ansioso por crescer, contando os fiapos do queixo e estufando o peitoral em frente ao espelho. A maior parte do sample dessa música vem da Vila Sésamo. Já o single fora de série “Who me?” ataca antigos esteriótipos associados aos afro-americanos – a canção começa com um enxerto de um disco infantil sobre um persoangem chamado Little Sambo – a batida funk pastelão disfarça suas ameaças. Mr. Hood possui uma porção de raiva – contra os esteriótipos, a desigualdade, a algo ainda-não-nomeado – mas é uma raiva administrável e diminuta. No canto superior direito da capa está a logo da banda, o Sambo, um cartoon de um homem branco fazendo black face sob uma tarja de proibição, mas mesmo isso possui um certo grau de jocosidade.

O álbum alcançou relativo sucesso. O videoclipe de “Peachfuzz” grudou na programação da MTV e o trio excursionou com nomes como Queen Latifah, Digital Underground, Big Daddy Kane e 3rd Bass. Os irmãos estavam trabalhando bastante.

Os pais deles tinham se separado e os dois homens remanecentes da casa, apoiando-se no Hip Hop, tiraram a mãe e a irmã da pobreza. Eles reservaram esperanças muito modestas para eles mesmos: "conseguir nossa casa própria e curtir um momento legal lá”, suspira Dumile, devagar. Foi quando nós estávamos crescendo. "Naquele tempo do álbum, eu tive meu primeiro filho e meu irmão a filha dele – memórias do começo da vida adulta. As coisas estavam mudando, o barato foi ficando louco, tanto dentro do jogo do rap quanto na vida".

“O jogo do rap tava mudando – o estilo gangsta vinha desbancando tudo. Além do que só por ser mais velho muita coisa acontece também.” Ele para, procura a linguagem que combine com seus olhos marejados. “Vivendo especialmente aqui nos Estados Unidos, sendo negro, ou seja lá como você queira chamar, essa idade é um período crucial. É quando você cai em um monte de armadilha.”

EU OUÇO VOZES

Dumile ultrapassou a linha, as armadilhas estavam colocadas, ele chegou aos 20. “Neste país, vivendo aqui, um monte de coisa vai acontecendo a uma certa idade, que é bem quando você vai entrando na vida adulta. Um monte de coisa começa a acontecer. Merdas bem estranhas". Amigos do Dumile começaram a desaparecer – "assassinados, encarcerados, merdas assim”. Um dia, ele olhou a sua volta e tudo tinha mudado. Ele já não era um adolescente precoce com contrato fonográfico e com o bolso cheio. Ele era um jovem adulto. “Fui notando que minha gente foi desaparecendo – gente boa, não gente ruim. Hoje eu sou tipo o último cara que sobrou da minha turma daquele período”. Com duas canções por gravar, o irmão de Dumile se juntou aos desaparecidos. Subroc morreu em um medonho acidente de carro.

“Como eu lidei com isso?”, ele se questiona. “Não sei mesmo. Tive de me manter focado. Eu tinha que garantir que sairíamos disso. As metas que eu e meu irmão estabelecemos... elas tinham que ser cumpridas. Coube a mim. Sabe o que isso me fez lembrar? Nós éramos grandes fãs do Boogie Down Productions naquela tempo. Quando aquilo aconteceu com Scott LaRock [em 1987o DJ do BDP foi assassinado a tiros nas ruas] – Deus o abençoe – Foi tipo.., um pressuposto para isso, para o que nos aconteceu. Quando aquilo ocorreu e nós dois soubemos, automaticamente pensamos que poderia ter sido a gente no lugar dele. E se o mesmo tipo de coisa acontecesse com um de nós – você sabe do que eu tô falando – o que podíamos fazer?

“Então vimos como o Kris [KRS-One] lidou com a situação”, continua. “Ele podia ter parado. Não sabíamos o que ele ia fazer. Ele ia lançar um outro álbum? Ele então veio com aquela coisa – [1988's] By All Means Necessary. Portanto aquilo nos mostrou como lidar com a situação. Fez com que estivéssemos pronto para o que pudesse eventualmente acontecer”.

Como um adolescente, presenciar seu herói KRS-One se recuperar da morte do amado parceiro LaRock deixou Dumile mentalmente preparado para uma perda semelhante. Ele fez o que pode para postergar a dor para mais tarde, tocando em frente o Black Bastards, e mergulhando de cabeça na aguda polêmica e no funk denso do álbum.

Às vezes Black Bastards é tão despojado e brincalhão quanto Mr. Hood. “Sweet Premium Wine” e a mulherenga “Plumskinzz” satisfazem impulsos libertinos inofensivos, enquanto a graciosamente devassa de “Contact Blitz” vai ao encontro dos KMD migrando do berço materno para uma turnê cheia de fumaça ilítica. Mas acabaram-se a raiva encenada e os olhos arregalados da meninice. Ao invés dos samples da Vila Sésamo e discos infantis, há samples vocais da trilha sonora do chocante e desafiador Sweet Sweetback's Badasssss Song, do Melvin Van Peebles, e do intimidador álbum Blue Guerrilha, de Gylan Kain, membro do Last Poets.

Uma diferença entre KMD e outros grupos de Hip Hop está contida numa diferença entre dois epítetos: “nigga” e “sambo”. Depois de uma tumultuada e muito debatida polêmica, o termo aposentado (“nigga”) foi reclamado e reabilitado pela cultura afro-americana, sua conotação outrora degradante metamorfoseou-se para um tratamento afetuoso mas também meio marrento e algo machista. Sambo, entretanto, remete a um termo desagradável de um tempo distante: não há forma de modificar ou ironizar uma palavra criada para reduzir afro-americanos a bebês tacanhos e medrosos. Enquanto seus pares aperfeiçoavam suas caras de mau, o estilo marrento, os KMD se preocupavam com auto-destruição. Os Dumile cresceram fazendo parte da Five Percent Nation, um ramo negro da fé mulsumana que também contava com os Wu-Tang Clan, os Brand Nubian e Rakim como aderentes. Eles (KMD) procuraram reconstruir os pagãos “surdos, mudos e cegos”, mas eles queriam fazer isso de uma forma simpática, aagradável, com juventude mas sem criancice. Às vezes o álbum parecia rir para não chorar. A capa de Black Bastards trouxe um desenho rudimentar de um Sambo, meio sorridente e meio exasperado, sendo enforcado. O linchamento do logotipo da banda pretendia sugerir a morte de um estereótipo.

Em abril de 1994, um mês antes do lançamento, um colunista da Billboard chamado Tern Rossi se posicionou contra a arte da capa. Rossi, que não ouviu o álbum nem entendeu as intenções irônicas dos KMD, escreveu um artigo para essa revista tão influente desconjurando a Elektra. Jackie Martinez, chefe da Hit U Off Management que cuidava dos KMD, argumentou que (a capa) abordava "como os negros eram outrora retratados, nada mais do que isso. A arte da capa é exatamente o oposto do que essas pessoas interpretaram agora”.

Naquela época, inclusive, a indústria fonográfica se encontrava como peça chave nas guerras culturais. Apenas dois anos antes, o furor em volta de “Cop Killer”, do Ice-T, provocou boicotes de níveis elevados, campanhas de desinvestimento e debates acalorados sobre moralidade pública. A última coisa que a gravadora dos KMD desejava era criar qualquer tipo de controvérsia. A não ser abandonar a capa, não havia outra forma de responder à Rossi. Dumile, que tinha feito o desenho, não cederia. O álbum foi retirado de produção e os KMD foram liberados do contrato. (A versão integral do disco só iria aparecer em 2000, pelo selo Subverse).

“Consegue imaginar?”, ele pergunta, exasperado. “Durante um período de seis meses, foi tipo, as coisas foram mudando de forma rápida e drástica, em todos os aspectos. Foi uma coisa pesada. Naquela época eu não enxerguei isso assim, mas agora quando eu penso sobre, foi realmente um tempo bem duro.”

Então Dumile fez o que tinha que fazer: desapareceu, também.

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Os KMD: Zev Love X, DJ Subroc e Onyx the Birthstone Kid

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3rd Bass, em "The gas face", com  participação de Zev Love X

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A 'polêmica' capa de "Black Bastards"

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Doom pré-máscara, meados dos anos 90






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