quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

"A vida de meu pai", de Raymond Carver

 Revisão da tradução por Igor Valente


Raymond e seu pai, Raymond


O meu pai se chamava Clevie Raymond Carver. Sua família o chamava Raymond, e seus amigos C. R. Fui registrado como Raymond Clevie Carver Jr. Odiava a parte do “Junior”. Quando eu era pequeno, meu pai me chamava Frog, o que era bem tranquilo. Mais tarde, como todos da minha família, ele começou a me chamar de Junior. Me chamou assim até eu ter treze ou quatorze anos e decidir que não ia responder mais ninguém que me chamasse desse jeito. Ele então começou a me chamar de Doc. Deste período até a sua morte, em 17 de junho de 1967, ele só me chamou de Doc ou de Filho.

Quando ele faleceu, minha mãe telefonou pra minha esposa pra lhe dar a notícia. Eu estava longe de casa naquela época, entre vidas, tentando me inscrever na Escola de Biblioteconomia da Universidade de Iowa. Quando ela atendeu o telefone, minha mãe berrou, “Raymond morreu!”. Por um segundo, minha esposa pensou que minha mãe estava falando que eu estava morto. Minha mãe então esclareceu de qual Raymond ela estava falando, no que minha esposa disse, “Graças a Deus. Pensei que você tinha falado do meu Raymond”.

Meu pai pegou muita carona em vagões vazios quando saiu do Arkansas até o estado de Washington em 1934, a procura de trabalho. Eu não sei precisar se ele estava perseguindo um sonho quando foi para Washington. Tenho minhas dúvidas. Não acho que ele sonhasse muito. Acredito que ele estava apenas procurando um trabalho estável com um salário decente. Quando digo trabalho estável quero dizer trabalho. Ele foi catador de maçãs por um tempo, a seguir virou trabalhador da construção civil na Barragem da Grand Coulee. Depois que ele juntou algum dinheiro, comprou um carro e foi até o Arkansas ajudar sua família, meus avós, a se mudarem para o oeste. Ele disse que meus avós estavam literalmente passando fome. Foi durante um curto período no Arkansas, numa cidade chamada Leola, que minha mãe topou com meu pai na calçada quando ele estava saindo de uma taberna. 

“Ele estava bêbado”, ela disse. “Nem sei por que eu o deixei falar comigo. Os olhos dele estavam brilhando. Gostaria de ter tido uma bola de cristal”. Eles se conheceram noutra situação, pouco mais de um ano antes, em uma festa. Ele teve algumas namoradas antes dela, minha mãe me disse. “Seu pai sempre teve namorada, mesmo depois de se casar comigo. Mas ele foi meu primeiro e único. Nunca tive outro homem. Também nunca senti falta”. 

Um juiz de paz os casou no mesmo dia em que foram para Washington; ela, uma garota grande do campo; ele, um trabalhador braçal camponês que depois se tornou empregado da construção civil. Minha mãe passou sua lua de mel com meu pai e a família dele, todos acampados na beira de uma estrada no Arkansas.

Em Omak, Washington, meu pai e minha mãe viviam em um espaço não muito maior que um chalé. Meus avós moravam ao lado. Meu pai ainda estava trabalhando na barragem, esta tinha grandes turbinas que produziam eletricidade com a água represada 100 milhas Canadá adentro. Ele esteve na multidão para ouvir Franklin D. Roosevelt discursar no canteiro de obras. “Ele nunca mencionou aqueles que morreram construindo a barragem”, meu pai disse. Alguns de seus amigos morreram lá, homens do Arkansas, Oklahoma e Missouri.

Ele depois arranjou trabalho em uma serraria em Clatskanie, Oregon, uma pequena cidade ao lado do rio Columbia. Eu nasci lá, e minha mãe tinha uma foto de meu pai em frente à entrada da serraria, me exibindo orgulhosamente para a câmera. Meu gorro está torto e prestes a cair. A boina dele está com a pala para trás, e ele está ostentando um grande sorriso. Ele estava começando ou acabando o turno? Não interessa. De qualquer modo, ele tinha um trabalho e uma família. Eram dias de inocência e juventude.

Em 1941 nos mudado pra Yakima, Washington, onde meu pai foi trabalhar como guardador de serras, uma função específica que ele aprendeu em Clatskanie. Quando a guerra começou, ele foi dispensado de ir ao combate porque seu trabalho foi considerado importante para os esforços de guerra. Madeira trabalhada era uma das necessidades das forças armadas, e ele manteve suas serras tão afiadas que elas podeiam raspar os pêlos dos braços.

Depois de meu pai nos levar pra Yakima, ele levou seus pais também. Em meados dos anos quarenta, o resto da família do meu pai – seus irmão, suas irmã e o marido, como também os tios, primos, sobrinhos e outros parentes – saiu de Arkansas. Tudo meio que motivado por meu pai, que foi o primeiro a sair. Os homens vieram para trabalhar na Boise Cascade, onde meu pai trabalhou, e as mulheres vieram trabalhar como empacotadeiras de maçãs para as fábricas de conservas. Em pouco tempo se conseguia perceber – de acordo com minha mãe – que todo mundo estava melhorando de vida exceto meu pai. “Seu pai não conseguia juntar dinheiro”, minha mãe dizia. “O dinheiro sempre sumiu no fundo dos bolsos. Ele estava sempre fazendo algo pelos outros”.

A primeira casa que eu lembro de ter morado, na 1515 South Fifteenth 10 Street, em Yakima, o banheiro era no lado de fora. Na noite de Halloween, ou em qualquer outra, não importa, as crianças da vizinhança, pré-adolescentes, eram capazes de tirar nosso banheiro e levá-lo pra beira da estrada. Meu pai sempre tinha que arranjar alguém para ajudá-lo a trazer o banheiro de volta. Essas crianças podiam também levar nosso banheiro pra um quintal qualquer. Uma vez eles literalmente botaram fogo no banheiro. Mas a nossa não era a única casa que tinha o banheiro fora. Quando eu já estava crescido o suficiente para saber o que fazia, jogava pedras nos outros banheiros quando via alguém entrando lá. Isso de jogar pedra eu chamava de bombardeamento de banheiros. Depois de um tempo, no entanto, todas as casas foram colocando banheiros internos, até que, de repente, o nosso era o único banheiro em toda a vizinhança que ainda ficava do lado de fora. Lembro da vergonha que senti quando um dia meu professor da terceira série, Sr. Wise, me deu carona até em casa. Pedi pra ele parar numa casa antes da minha, fingindo que morava ali.

Eu consigo lembrar do que aconteceu uma noite quando meu pai chegou tarde em casa e encontrou todas as portas fechadas por dentro por minha mãe. Ele estava bêbado, e nós pudemos sentir a casa tremer enquanto ele tentava abri-la. Quando ele forçou e abriu a janela, minha mãe o acertou bem na testa com o coador e ele foi nocauteado. Nós o vimos lá na grama. Anos depois disso, eu costumava pegar esse coador – que era tão pesado quanto um rolo de mesa – e imaginar quão doloroso devia ser levar com um troço desse na cabeça.

Foi nesse período, pelo que eu me lembro, que meu pai veio no meu quarto falar comigo. Ele se sentou na cama e me disse que eu talvez teria de ir morar por um tempo com a minha tia LaVan. Eu não conseguia entender o que eu tinha feito para ter que ir morar em outra casa. Mas isto, também – qualquer que tenha sido o motivo – deve ter passado, mais ou menos, até porque continuamos juntos e eu não precisei ir morar com minha tia  ou outro parente.

Lembro da minha mãe jogando o uísque do meu pai pelo ralo. Às vezes ela jogava tudo, às vezes, quando estava com medo de ser apanhada, ela jogava metade do uísque e preenchia com água o restante da garrafa. Uma vez provei o uísque do meu pai. Aquilo era horrível, não consegui entender como alguém era capaz de bebê-lo.

Depois de um bom tempo sem um, finalmente conseguimos um carro em 1949 ou 50; um Ford 1938. Mas na primeira semana ele se estragou e meu pai teve que mandar reconstruir o motor.

"Nós tínhamos o carro mais velho da cidade”, minha mãe dizia. “Com todo dinheiro que gastamos consertando esse carro, podíamos ter comprado um Cadillac”. Uma vez ela encontrou um tubo de batom no chão do carro, além de um lenço de renda. “Vê isso?”, ela disse para mim. “Alguma biscate esqueceu isso no carro”.

Uma vez eu a vi levar uma panela com água quente para dentro do quarto onde meu pai estava dormindo. Ela pegou a mão dele e a colocou dentro da água quente. Isto faria ele falar enquanto dormia, ela me disse. Havia coisas que ela precisava saber, coisas que ela tinha certeza que ele escondia dela.

Quase todo ano, quando eu era criança, pegávamos o North Coast Limited sentido Cascade Range de Yakima até Seatlle e ficávamos no hotel Vance e comíamos, eu me lembro, em um lugar chamado Dinner Bell Café. Uma vez nós fomos ao Iva’s Acres of Clams e bebemos caldo quente de ameijoa.

Em 1956, ano que eu terminaria o ensino médio, meu pai se demitiu da serraria em Yakima e arranjou um trabalho em Chester, uma pequena cidade serralheira do norte da California. As razões naquela época para ele ter aceitado esse trabalho foram que eles pagavam um pouco mais pela hora trabalhada e uma vaga promessa de que ele poderia, em alguns anos, chegar à chefia dessa nova serraria. Mas acho, principalmente, que meu pai estava inquieto e queria simplesmente tentar a sorte em outro lugar. As coisas tinham se tornado um pouco previsíveis para ele em Yakima. Também, no ano anterior, tinham falecido, com o intervalo de seis meses de um para o outro, os seus pais.

Porém, alguns poucos dias depois que eu terminei o colégio, quando minha mãe e eu estávamos prontos para mudarmos para Chester, meu pai escreveu uma carta para dizer que ele não estava muito bem. Ele não queria que ficássemos preocupados, ele disse, mas ele tinha se cortado numa serra. Talvez ele tivesse um pouco de detrito de aço no sangue. Enfim, alguma coisa aconteceu e ele teve que faltar ao trabalho, ele disse. Nessa mesma correspondência tinha um cartão postal não assinado que dizia para minha mãe que meu pai estava prestes a morrer e que ele estava bebendo uísque puro a sério.

Quando chegamos em Chester, meu pai estava morando em um trailer que pertencia à empresa. Eu não o reconheci imediatamente. Acho que por um momento eu não queria reconhecê-lo. Ele estava muito magro e pálido e parecia confuso. Suas calças estavam frouxas. Ele não parecia meu pai. Minha mãe começou a chorar. Meu pai colocou os braços em volta dela e deu tapinhas em suas costas vagamente – como se ele não soubesse o que estava se passando. Nós três começamos a viver no trailer, e cuidávamos dele o melhor que podíamos. Mas pai estava doente, e não conseguia melhorar. Eu trabalhei com ele na serraria durante o verão e parte do outono. Nós levantávamos pela manhã e comíamos ovos e torradas enquanto ouvíamos rádio, e em seguida saíamos com nossas marmitas. Nós atravessámos a porta de entrada às oito da manhã, e eu só o veria de novo na hora da saída. Em novembro eu voltei para Yakima para ficar mais perto da minha namorada, a garota que eu tinha colocado na cabeça de que iria me casar.

Ele trabalhou na serraria em Chester até fevereiro, quando ele teve uma crise durante o trabalho e foi levado para o hospital. Minha mãe me pediu se eu não poderia vir ajudá-la. Eu peguei um ônibus de Yakima até Chester com a intenção de dirigir com o carro da família de volta para Yakima. Mas agora, somado à sua doença física, meu pai estava em meio a um colapso nervoso, embora nenhum de nós soubesse nomear aquilo naquele tempo. Durante toda a viagem de volta para Yakima, ele não falou nada, nem mesmo quando fizemos perguntas diretamente para ele (“Como você se sente, Raymond?”, “Você está bem, pai?”). Ele se comunicou, se isso foi se comunicar, mexendo a cabeça ou a mão como se dissesse que ele não estava nem aí para nada.  A única vez que ele disse alguma coisa durante a viagem foi quando eu estava correndo numa rodovia em Oregon e o escapamento do carro caiu. “Você estava indo muito rápido”, ele disse.

De volta a Yakima, um doutor encaminhou meu pai para um psiquiatra. Minha mãe e meu pai ficaram de "baixa" do trabalho, como aquilo foi chamado, e o município pagou pelo psiquiatra. O psiquiatra perguntou a meu pai, “Quem é o Presidente?”. Ele fez uma pergunta que ele pudesse responder. “Ike”, meu pai disse. Mesmo assim, eles o colocaram no quinto andar do Valley Memorial Hospital e começaram com ele o tratamento de eletrochoque. Eu já estava casado e tentando começar a minha própria família. Meu pai ainda estava internado quando minha esposa veio para o mesmo hospital, apenas um andar abaixo, para ter o nosso primeiro bebê. Após o parto, subi as escadas para dar a notícia a meu pai. Eles me levaram até uma porta de aço e me indicaram onde eu poderia encontrá-lo. Ele estava sentado num sofá, enrolado a um cobertor. Pensei, que merda está acontecendo com meu pai? Sentei perto dele e disse a ele que agora ele se tornara avô. Ele demorou um minuto para dizer: “Eu me sinto como avô”. Foi tudo o que ele disse. Ele não riu e nem se mexeu. Ele estava numa grande sala com um monte de outras pessoas. Então eu o abracei, e ele começou a chorar.

Entretanto ele saiu de lá. Mas então vieram os anos em que ele não pôde trabalhar e ficava em casa tentando achar algo com que se ocupar e tentando entender o que foi que ele fez de errado na vida pra acontecer essa reviravolta. Minha mãe pulou de trabalho em trabalho. Um tempo depois ela se referia a esse tempo em que meu pai estava no hospital, e aos anos depois de sua saída, como “quando o Raymond esteve doente”. A palavra doente jamais voltou a ser a mesma para mim de novo.

Em 1964, por conta da ajuda de um amigo, ele foi sortudo o suficiente para se empregar em uma serraria em Klamath, California. Ele se mudou pra lá sozinho para ver se podia lidar com aquilo. Ele viveu relativamente perto da serraria, num quarto-e-sala não muito diferente daquele primeiro quarto-e-sala em que ele e minha mãe moraram assim que eles foram para o oeste. Ele rabiscava umas cartas para minha mãe, e se acontecia de eu ligar para casa, ela lia as cartas em voz alta para mim. Nessas cartas, ele dizia que estava tudo em ordem. Todo dia que ele saía para o trabalho, ele sentia que aquele dia era o mais importante da sua vida. Cada dia passado, dizia ele, fazia o próximo ser mais fácil. Ele disse pra ela me mandar um alô. Se ele não podia dormir à noite, ele dizia, ele pensava em mim e nos bons tempos que já tivemos juntos. Afinal, depois de alguns meses, ele recuperou um pouco de confiança. Ele podia trabalhar e não pensar e se preocupar de que ele pudesse decepcionar alguém outra vez. Quando ele estava mais estabelecido, ele pediu para que minha mãe viesse morar com ele. 

Ele ficou sem trabalhar por seis anos e perdeu tudo nesse tempo – casa, carro, móveis e eletrodomésticos, incluindo o enorme congelador que minha mãe adorava. Ele perdeu sua credibilidade – Raymond Carver era alguém que não conseguia pagar suas contas – e por isso a sua autoconfiança se foi. Ele chegou a perder a virilidade. Minha mãe contou para minha esposa, “todo aquele tempo que Raymond esteve doente nós dormíamos na mesma cama, mas não tivemos relações. Ele quis algumas vezes, mas nada aconteceu. Eu não sentia falta, mas acho que ele queria".

Durante esses anos eu estava tentando fazer a minha própria família e ganhar a vida. Mas, por um motivo ou outro, nós estávamos sempre se mudando. Eu não conseguia acompanhar de perto o que estava acontecendo na vida do meu pai. Mas eu tive uma chance em um Natal em lhe dizer que eu queria ser escritor. Eu poderia muito bem ter dito a ele que queria ser também um cirurgião plástico.  “Sobre o que você vai escrever?”, ele quis saber. Depois, querendo me ajudar, ele me disse, “Escreva sobre as coisas que você sabe. Escreva sobre aquelas pescarias que gente já fez”. Eu disse que podia ser, mas sabia que não faria. “Depois manda algo que você escreveu”, ele disse. Eu disse que mandaria, mas não o fiz. Eu não queria escrever nada sobre pescarias, e não achava que ele particularmente se importava ou mesmo entendesse o que eu estava escrevendo naquele tempo. Fora isso, ele não era um leitor. Não o tipo, aliás, que eu imaginava atingir com a minha escrita.

Então ele morreu. Eu estava muito longe, em Iowa, com muitas coisas ainda para lhe dizer. Eu não tive a chance de me despedir dele nem dizer que ele estava indo muito bem no novo emprego, que eu estava orgulhoso por ele tentar recomeçar.

Minha mãe disse que ele veio do trabalho aquela noite e comeu um bom prato. Depois se sentou sozinho à mesa e terminou de beber uma garrafa de uísque que já estava pela metade, uma garrafa que ela achou escondida no fundo do lixo sob o café moído um dia antes mais ou menos. Então ele se levantou e foi pra cama, onde minha mãe iria juntar-se a ele mais tarde. Mas durante a noite ela teve de levantar e ir dormir no sofá. “Ele estava roncando tão alto que eu não conseguia dormir”, ela disse. Na manhã seguinte quando ela foi olhá-lo, ele estava de costas com a boca aberta, suas bochechas estavam afundadas. Um fantasma, ela disse. Ela sabia que ele estava morto – não era preciso que um médico disse isso a ela. Mas ela ligou para o médico, de qualquer forma, e em seguida ela ligou para minha esposa.

Entre as fotos que minha mãe guardou do meu pai e dela daquele período em Washington, tinha uma em que ele estava parado em frente a um carro, segurando uma cerveja e uma vara de pescar. Ele estava usando o boné virado para trás, com um sorriso estranho na cara. Pedi a ela essa foto e ela me deu essa e umas outras. Essa eu sempre pendurava na parede em toda casa em que me mudava. Eu a examinava cuidadosamente de tempos em tempos, tentando captar alguma coisa do meu pai, e talvez de mim mesmo nesse processo. Mas eu não conseguia. Meu pai continuava a se distanciar mais e mais de mim, até que voltava no tempo. Afinal, durante uma mudança, perdi a tal fotografia. Foi então que eu tentei rememorá-la, e ao mesmo tempo que eu tentava dizer algo sobre meu pai, pensei como nós em coisas essenciais éramos parecidos. Escrevi o poema quando eu estava vivendo em um apartamento na zona sul de San Francisco, em um período que eu estava, como o meu pai, passando por problemas com o álcool. O poema foi uma forma de eu tentar me conectar com ele.

Fotografia do meu pai com vinte e dois anos

Outubro. Aqui nessa cozinha fria e nada familiar
estudo a face jovem e envergonhada do meu pai.
Sorriso sem graça, ele segura numa das mãos uma perca
amarela no anzol, e na outra uma garrafa de Carlsberg.
De jeans e camisa de flanela, ele se inclina
contra o para-choque dianteiro de um Ford 1934.
Ele desejava uma pose franca e saudável para sua posteridade,
com seu velho chapéu pendendo sobre a orelha.
Por toda vida meu pai quis parecer durão.
Mas seus olhos o desmentem, e suas mãos
oferecem frouxamente a perca morta no anzol
e a garrafa de cerveja. Pai, eu amo você,
porém, como expressar minha gratidão, eu que tampouco consigo lidar com bebida
e nem mesmo conheço lugares onde pescar. 


O poema é real em sua essência, exceto por meu pai ter falecido em junho e não outubro, como a primeira palavra do poema diz. Eu queria uma palavra com mais de uma sílaba para poder alongá-la um pouco. Mas mais do que isso, eu queria um mês apropriado ao que eu sentia quando escrevia o poema – um mês de dias curtos e luzes esbatidas, neblinado, coisas perecendo. Junho é verão dia e noite, formaturas, meu aniversário de casamento, o nascimento de um dos meus filhos. Junho não é o mês em que seu pai falece.

Depois do funeral, enquanto estávamos saindo, uma mulher que eu não conhecia veio até mim e me disse: “Ele está mais feliz onde ele está agora”. Eu a observei até perdê-la de vista. Ainda me lembro de um pequeno detalhe do botão do chapéu que ela estava usando. Um dos primos do meu pai – eu não sabia nome do homem – veio até mim e me cumprimentou. “Nós todos sentiremos a falta dele”, disse, e eu sabia que ele não estava apenas tentando ser educado.

Eu comecei a chorar pela primeira vez desde que soube da sua morte. Não estava pronto antes. Não tinha tido tempo para a ficha cair. Agora, de repente, eu não conseguia parar. Segurei-me a minha mulher e chorei enquanto ela dizia e fazia o que estava ao seu alcance para me confortar no meio daquela tarde de verão.

Ouvi as pessoas falarem coisas consoladoras para minha mãe, e fiquei contente que a família do meu pai tenha aparecido, e tenha vindo até onde ele estava. Eu pensei que conseguiria recordar tudo que foi dito e feito naquele dia e talvez algum dia encontrasse um jeito de registrar isso. Mas não. Esqueci tudo, ou quase. O que eu realmente me lembro é que eu ouvi meu/nosso nome ser usado muitas vezes naquela tarde, o nome do meu pai e o meu. Mas eu sabia que eles estavam falando do meu pai. Raymond, essas pessoas continuaram falando em suas lindas vozes saídas da minha infância, Raymond.


Os Carvers

É possível ler o original em inglês aqui.

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